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Penso em ti e a madrugada se arrepia
*
Preparo o peito
para a espera de teu rosto
-------------como um lobo
que sozinho
ao entardecer
Despojo-me do supérfluo
: halo que envolve o cão
brotado do enlevo túrgido do macho
-------------volátil
à imagem lúbrica da fêmea
Suplico a Gaia por teu corpo serpentino-
-------------a corça negra do rebanho
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Vejo que a vida é gastar-me em teu calor
-------------no néctar de tua flor
e então correr o campo, sem pudor
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Meus cães brincam à toa
uivam e ladram ao bel-prazer
mas com hora certa pra cada coisa
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Nunca vou compreender
como um fantasma inglês
de guarda-chuva e colete
baixou no corpo de meus cães
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Há tanta indagação pela casa...
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Meus peixes também questionam
no azul-da-prússia:
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são Nijinskis do remoinho d’água
do confinamento, das borbulhas
Vêm à tona avaliar meu cheiro
( e a possibilidade do motivo ser outro
traz-me a dimensão das lacunas da casa )
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Meus pássaros, cidadãos do mundo:
Pavarottis, Bidus, Caballés
Nureievs do viveiro
na sua obstinada procura
de si mesmo )
e sei que os minutos seriam infindáveis
não fosse a arte
de meus pássaros
*
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Uma corruíra fez ninho na varanda
Ela também interroga
mas não demonstra
Move com graça
e astúcia
pelos caibros, orifícios
caçando aranhas ensimesmadas
que sonham a vida inteira
*
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Beija-flores pairam nos bebedouros
pois nem tudo é doce por essa vida afora
*
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Chopins, rolinhas e pardais
dividem as sementes do santo dia
nos cochos espalhados no quintal
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Contudo, ainda há brechas pela casa-
nichos vagos, ranhuras, nesgas
onde só idéias se comprimem
*
*
Bem podia Manoel
poeta do nada e das minúcias
ver as formigas do jardim
a domar seu universo sigiloso:
*
erguem vulcanitos
na terra carminada
e marcham organizadas
atávicas
e cogitam
*
*
Já terminei namoro por causa delas
Matar formigas é pior que traição
*
*
Há muita vida na casa
deveras
e mesmo assim ela é um queijo suíço-
império de grotas, labirinto d’ocos
onde se aninha
o lebréu das fantasias
o celacanto das quimeras
o grou da circunspecção
*
*
Mundo das noções-
isto é minha casa !
Aqui, até as samambaias ponderam
*
*
O alpendre é a biblioteca
cheia de vasos com plantas refletindo
tramando cenas, deduzindo fórmulas
*
*
Nas manhãs de sol
borboletas rolam o planeta
qual besouros nobres e pueris
*
*
Quando a noite se despenca
alheia a tudo
sou preso em pensamentos
tão viris
quanto a lança tesa
dum feroz guerreiro banto
*
*
Então dobro-me
na meia-luz
e vejo um par de olhos
amendoados
profano-sacros
delineados de negro
*
e depois
cílios lambidos de rímel
lábios entreabertos, de batom
púbis, ventres, quadris
*
e o hálito raro
de anis
brotado da língua morna
dos dentes alvos
que ressaltam na penumbra
e dardejam
e flamejam
e desafiam
*
*
E, por fim
as curvas sigmóides
meias-taças
colinas, branduras de cetim-
*
*
A benta essência
da Deusa-Lua dos antigos
crescente enigma:
*
o ser contido que de repente se escancara
o ser infindo que gera e nutre e engendra o eterno
o ser que desanda em sangue
quando se doa e não concebe
e aponta o norte na trilha cega do silêncio
*
*
Mulher !
Nada além do arquejo
de roubar da noite uma mulher
*
*
Que seja a tíbia dona imaginada
( musa do poente sórdido )
que nunca se revela por inteiro
*
ou a pálida ninfa
galhofeira
que deixa apenas se entrever
( a duras penas )
a menear-se nas touceiras
da jornada
*
mas que, súbita
entrega-se da forma mais exígua
e então se vai embora
levando consigo a sustentação
do império
*
*
Sim, minha casa tem hiatos
na noite arguta
*
*
A fauna e a flora
respeitam essa calada
*
*
Nenhum latido, nenhum pio
irrompe nesse fado
*
*
Talvez intuam
que é solidão contemplativa
ermo de arroubos
conquanto não quisera sê-lo:
o cio vil
e sem recato
do gênero mais rude
*
*
Essas noites caducam
sem destino ou nexo:
grenha fugaz
da proibida amante
a roçar, por um minuto delirante
o rosto vincado de um marujo
subalterno
*
*
Finda a treva
e desde sempre, a corruíra
ressurge:
*
adentra-me os ouvidos
vasculha
as cavas mais internas
atrás de grilos e esperanças
naufragadas
*
*
Ao primeiro
chilro
o novo dia sai do útero
2 comentários:
Desequilibrante... muito bom!
Parabéns pelo blog, adoeri sua poesia e suas pinturas.
Sou apaixonada por Manoel de Barros.
A tela é a cara dele!
Abraços
Olá!
Obrigada pela visita!!! Também achei bem legal conhecer outro biólogo poeta, pintor... Por sinal, adorei todas as poesias que li e os quadros! Muito legal!
Sucesso!
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